Deve-se ou não evitar usar a primeira pessoa em linguagem científica?

Todos já escutamos que não se deve usar a primeira pessoa (no singular ou no plural) em linguagem científica e que, ao contrário, deve-se usar a voz passiva. O problema é que isso já há muito tempo foi abandonado, provavelmente porque gera confusão e ambiguidade.

O uso da primeira pessoal (no singular ou plural) não apenas é aceito, como pode tornar o texto mais fluido e claro.

Segundo o American Institute of Physics (AIP) Style Manual [1]:

O velho “taboo” contra o uso da primeira pessoa em prosa formal já há tempos tem sido rejeitado pelas melhores autoridades e ignorado por alguns dos melhores escritores. “We” (no inglês) pode ser usado naturalmente por dois ou mais autores quando eles se referem a si mesmos; “we” pode também ser usado para se referir a um autor único e seus associados. Um autor único também deve usar o “we” na construção que, educadamente, inclui o leitor: “We have already seen…”

A voz passiva, ainda segundo o AIP Style Manual,

continua sendo uma forma natural de dar proeminência aos fatos essenciais: Air was admitted to the chamber. (Quem se importa com quem abriu a válvula?) Mas evite a voz passiva se ela torna a sintaxe deselegante ou obscura. A frase com a estrutura

                The values of… have been calculated.

soa estranha e tem menos peso do que esperado; ao contrário, comece com

    I [We] have calculated…

Outra sugestão boa do AIP Style Manual:

The author(s)” pode ser usado como substituto para “I [we]”, mas use outra construção se você mencionou outros autores recentemente, ou escreva “the present author(s)”.

Na minha opinião, a voz passiva deve ser usada de forma bastante criteriosa por causa da ambiguidade que pode criar em artigos científicos e dissertações. Alguns trabalhos confundem o leitor com o uso da voz passiva a ponto de não ficar claro o que foi feito pelo autor (ou autores) do artigo ou dissertação e o que foi feito por colaboradores ou por outros pesquisadores (que não fazem parte do artigo ou dissertação).

Veja, por exemplo, as frases:

  • Para investigar esse problema, um equipamento foi construído para medir…
  • To investigate this problem, an equipment was built to measure…

No caso de um artigo eu não vejo problema com as frase acimas, mas no caso de uma tese elas podem esconder o fato de que não foi o aluno quem construiu o equipamento, mas outra pessoa no laboratório. Se de fato foi o estudante o responsável pela construção do equipamento, eu prefiro:

  • Para investigar esse problema, construímos um equipamento para medir…
  • To investigate this problem, we built an equipment to measure…

Provavelmente na maioria dos casos a confusão criada pela voz passiva não é intencional, mas em teses e dissertações eu acho importante que o texto deixe claro o que é contribuição do estudante e o que pode ser atribuído a outros.

O uso da primeira pessoa e verbos ativos é particularmente importante em projetos de pesquisa, no qual a intenção é deixar claro que o pesquisador vai realizar a investigação proposta.

Quanto à escolha entre a primeira pessoa no singular ou no plural, eu prefiro o uso do plural devido ao fato de que poucos trabalhos são de fato realizados por uma única pessoa. Mesmo no caso de uma tese ou dissertação, na qual o aluno é o único autor, o trabalho em si foi realizado no mínimo em colaboração com o orientador.

Portanto, quando dizemos:

  • Nesse trabalho investigamos…
  • In this work we investigated…

usamos o plural para incluir colaboradores que ajudaram no trabalho (i.e., “eu e meu orientador”, ou “eu e meus colaboradores” investigamos…).

Apesar desse ser o chamado “plural de modéstia”, eu diria que é um “plural justo”, pois reconhece a contribuição de todos para o trabalho criado, se não com trabalho executado ao menos com a orientação.

Referências

  1. American Institute of Physics, AIP Style Manual. (American Institute of Physics, Woodbury, 1990).

Sobre Eduardo Yukihara

Pesquisador | Professor | Autor
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16 respostas para Deve-se ou não evitar usar a primeira pessoa em linguagem científica?

  1. Marco disse:

    Parabéns pelo importante post. Eu sempre prefiro usar a voz ativa, a ordem direta e a primeira pessoa em artigos científicos, pois esse estilo deixa o texto mais simples, objetivo e claro. Contudo, uso a voz passiva ou a ordem indireta em casos específicos, especialmente na seção de métodos, quando quero dar destaque a algum elemento importante da frase ou quando quem fez a ação é irrelevante (como vocês comentaram no post). Ou seja, na prática, um mesmo artigo usa diferentes abordagens, dependendo da seção e do objetivo da frase. Não há uma receita de bolo certa em todos os casos. Também escrevi sobre esse tema no meu blog: http://marcoarmello.wordpress.com/2012/03/13/como-escrever-um-artigo-cientifico/. Recomendo três livros que ajudam muito na redação científica:
    1. Strunk W, White EB. 2008. The elements of style: 50th anniversary edition. New York: Pearson Longman. 128 p.
    2. Day RA. 1998. How to write & publish a scientific paper. Phoenix: Oryx Press. 269 p.
    3. Volpato GL. 2007. Bases teóricas para redação científica. Vinhedo: Scripta. 125 p.

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    • Marco, excelente comentário, muito bem colocado. Achei principalmente importante a clarificação que você deu sobre o fato de que diferentes seções podem exigir construções diferentes e de que não há receita de bolo. As suas sugestões de leitura também são muito apropriadas – vou colocá-las na minha página de sugestões e em outros artigos relevantes. Mais uma vez obrigado pela contribuição!

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  2. Bianca disse:

    Ola, otimo posicionamento. Entretanto, no Brasil, a maioria dos autores de Metodologia Cientifica e redaçao cientifica apontam como correto nao usar a primeira pessoa. Assim, no caso brasileiro, o que vc recomendaria?

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  3. Jaílson Novais disse:

    Ótima postagem, Eduardo! Parabéns!
    Eu também concordo que o uso da voz ativa enriquece a maior parcela do texto. No Brasil, infelizmente, a maioria dos revisores ainda não aceita isso; pelo menos é o que eu observo na minha área (Botânica).
    Ao meu ver, o uso da voz ativa mostra muito bem que os autores assumem a responsabilidade pelo dado que está sendo apresentado ou discutido no trabalho. Por exemplo, eu considero muito mais interessante e relevante afirmar “A partir disso, nós concluímos que…” do que “A partir disso, conclui-se que…”.
    Um excelente curso on line totalmente gratuito sobre escrita científica é ofertado pela Stanford University: https://www.coursera.org/course/sciwrite.
    Recomendo aos leitores ficarem atentos à oferta de turmas futuras.

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    • Jailson, obrigado por contribuir para a discussão, principalmente no que se refere à perspectiva no Brasil, sobre a qual sei pouco. Também não conhecia o curso do Corsera. Vou dar uma olhada e colocar um post curto para os leitores. Muito boa dica! Mais uma vez obrigado!

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  4. Riselda Maria de França Oliveira disse:

    Pretendo elaborar um plano de estudos. Estou consultando como devo desenvolve-lo. O que li , contribui muito para que eu possa tirar dúvidas. E começar portanto a escrever.Sempre pensei que é muito difícil, escrever.. Tenho o problema em mente. Sei o quero pesquisar e a contribuição, que vai trazer para o grupo de pesquisa, do qual pretendo fazer parte. A minha área é a Educação. Obrigada..

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  5. José disse:

    Esse texto é excelente, principalmente por desmistificar certos “padrões”. Eu acabei de receber a avaliação de um assessor que considera que a”norma científica” exige voz passiva, e por isso meu texto será rejeitado APENAS porque escrevi “Testamos”, e não “Foram testados”. Para ser aceito, basta me adequar ao que ele acreditar ser a “norma científica”.
    Não acredito que chegaremos em algum lugar enquanto muitos assessores brasileiros acharem que o mais importante é a forma, e não o conteúdo. Felizmente isso está mudando (aos poucos, mas está).

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  6. Concordo inteiramente com o texto. Nâo faz sentido a imposição da voz passiva a título de impessoalidade, como se os textos, pesquisas, investigações, conclusões não tivessem autor pessoal e como se, por isto, o discurso científico devesse ser na voz passiva, que confunde o leitor. “Foi feito” é diferente de “Fiz”, pois no segundo caso identifica-se claramente quem fez, ao passo que no primeiro depreende-se que o autor fez, mas a clareza, o rigor científico (em cujo nome alguns recusam a primeira pessoa) exigem que se explicite quem fez, ao invés de se cometer aoleitor o papel de adivinhar que quem fez foi o autor. Além disto, é questão de naturalidade: é natural o autor usar a primeira pessoa para referir-se às próprias ações; é artificial não o fazer. Finalmente, o emprego da primeira pessoa é forma de o autor assumir as suas idéias, valores, resultados, opiniões; não se entende porque ele as possa formular e não as deva assumir como suas.

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  7. Geovany Silva disse:

    Sempre nos deparamos com essa discussão, mas confesso que o texto impessoal sugere uma imparcialidade científica que, dependendo da área, da abordagem e das instituições envolvidas se torna mais coerente. Mas isso não é unanimidade! Apenas uma convenção que determinados grupos ou instituições seguem ou não na academia. A Universidade de Lisboa, por exemplo, sugere o uso da primeira pessoa na maioria dos cursos. A do Porto, não. Enfim, é melhor os alunos se atentarem como se trabalha na sua instituição e, se for fazer um trabalho, atentar-se às avaliações e às recomendações de escrita que bancas, avaliadores, periódicos, etc. Afinal, quanto menos problemas para o candidato ou pesquisador, melhor.

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  8. Já usei a primeira pessoa do singular num resumo de congresso no qual eu era o único autor de fato. Foi um trabalho que comecei sozinho, conversei com pouquíssimas pessoas sobre ele (e mesmo assim apenas breves comentários) e decidi apresentar os resultados preliminares num congresso. Nesse caso, parecer-me-ia estranho usar o plural, embora eu já tenha visto textos de um só autor em que ele dizia “nós”. É o “plural majestático”, similar ao uso do “vós” para se dirigir a uma só pessoa, por respeito.

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  9. Anchieta Silveira disse:

    O trabalho científico deve ser impessoal. Deve-se utilizar a terceira pessoal. É isso que a ABNT recomenda. É isso que a ciência espera. O importante é o objeto em questão e não o que o pesquisador acha.

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  10. Aline disse:

    Prezado Professor, importante destacar que a língua portuguesa NÃO é uma tradução da língua inglesa. O senhor utilizou uma referência para o idioma Inglês. Esta distorção gerou o que conhecemos hoje como “gerundismo”. Ainda, a língua inglesa é muito mais simples e direta do que a língua portuguesa, que é muito rica e bonita. Procure textos da Universidade de Coimbra, da Universidade de Lisboa, aí sim, teremos a referência correta de como deve ser utilizada a primeira pessoa.
    Textos científicos não devem ser escritos na primeira pessoa.

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  11. José Anilto dos Anjos disse:

    A impessoalidade que a ABNT recomenda refere-se a relatórios de pesquisa, que são diferentes da apresentação de resultados da pesquisa, geralmente feitos em TCC, monografias, artigos científicos. A impessoalidade também não quer dizer o uso de terceira pessoa nem voz passiva. É preciso desmistificar essas questões redacionais.
    “Plural magestático” é uma expressão que deve ser banida da redação científica. Foi usada por teóricos do discurso no início do século passado, e virou modismo no mundo dos conselheiros redacionais, que repetem a expressão sem pensar. Um exemplo é Wazlawick, em seu livro “Metodologia de Pesquisa para Ciência da Computação”, que, sem ter nada melhor para aconselhar em termos redacionais, escreve: “Deve-se evitar sempre o uso da primeira pessoa, mesmo o plural magestático, reservado apenas ao Papa e aos reis, bem como a segunda pessoano texto científico. A monografia é impessoal. Ela não é narrativa, para que se pudesse usar primeira ou segunda pessoa. Então o impessoal sempre deve prevalecer.” Claramente o autor “copiou” isso de algum pergaminho medieval.

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